Exposição investiga as origens e transformações do samba urbano no Rio de Janeiro

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A partir de 28 de outubro (sábado), o IMS Paulista apresenta a exposição Pequenas Áfricas: o Rio que samba inventou. A exposição reconstitui a cena cultural carioca, no começo do século 20, na qual as comunidades afrodescendentes criaram o samba urbano. A mostra aborda as complexas redes de trabalho, solidariedade e espiritualidade construídas nesse período histórico, além de suas reverberações no presente, das escolas de samba aos terreiros e quintais. A curadoria da exposição é dos historiadores e professores Angélica Ferrarez, Luiz Antonio Simas, Vinícius Natal e Ynaê Lopes dos Santos. A expografia é assinada pela arquiteta Gabriela de Matos.

Na abertura da mostra (28/10), às 11h, haverá uma roda de samba conduzida pelo bloco Cacique de Ramos, cuja história está contemplada na exposição. O evento é gratuito e aberto ao público (mais informações no serviço).

Dividida em dois andares, a exposição reúne aproximadamente 380 itens, entre documentos, gravações musicais, fotografias, matérias de jornais, filmes e obras de arte, provenientes do acervo do IMS e de outras instituições. A mostra faz alusão ao termo “Pequena África”, cunhado pelo artista Heitor dos Prazeres para se referir à região da Zona Portuária do Rio, que, no começo do século 20, concentrava uma numerosa população afrodescendente. Na exposição, no entanto, o termo é pensado enquanto construção política e expandido para outras regiões da cidade.

A curadoria comenta o recorte: “A partir da Pequena África histórica, propomos um percurso pelas Pequenas Áfricas que a ela se sucederam, menos um lugar do que um conjunto de práticas consagradas àquele modo de vida. Uma ideia pulsante em núcleos de resistência e ação sustentados por referências e valores de um Rio de Janeiro negro, para além dos clichês que se confundem com a imagem oficial da cidade.”

O primeiro andar da mostra adota um viés histórico, apresentando a região onde o samba urbano se originou e suas mudanças ao longo do tempo. O percurso se inicia no Cais do Valongo. Tido como o maior porto escravista da história, o complexo do cais recebeu cerca de 1 milhão de africanos escravizados, vindos forçados para o Rio de Janeiro. Inteiramente aterrado nas reformas urbanísticas do início do século 20, foi redescoberto durante escavações em 2011 e reconhecido pela Unesco como Patrimônio da Humanidade em 2017.

Na entrada da exposição, o público ouvirá uma gravação em áudio na qual o ator Hilton Cobra lê anúncios de venda e compra de pessoas escravizadas, retirados do Diário do Rio de Janeiro, entre 1821 e 1831. A leitura dá a dimensão da violência que imperava na sociedade colonial e neste território em especial, onde, posteriormente, as populações escravizadas reinventaram suas vidas e culturas. Neste primeiro núcleo, os visitantes também encontram um painel de monotipias do artista Carlos Vergara, feito a partir de fragmentos da escavação do Valongo. Utilizando terra e outros materiais encontrados no local, Vergara imprimiu nas telas os contornos das pedras pisadas pelos sujeitos escravizados e por seus algozes.

Outra obra presente neste núcleo é Proteção aos ancestrais (2023), de Mãe Celina de Xango, figura essencial nos processos de escavação do Valongo. Comissionada para a mostra, a instalação é composta por uma série de plantas naturais utilizadas nos rituais de candomblé, como espada-de-iansã e lança-de-ogum. A obra remete à ideia de purificação, funcionando como um ritual de passagem da dor para a celebração da vida. Ainda neste núcleo, estão fotos do sítio arqueológico do Valongo feitas em 2023 pelo fotógrafo Walter Firmo.

O núcleo seguinte, por sua vez, tem como pano de fundo o contexto da República e seus esforços de embranquecimento, quando o governo estimula a imigração europeia, expulsando as populações afrodescentes do centro e criando leis de criminalização de manifestações da cultura popular, como a prática da capoeira. Ainda assim, pelas frestas, emergem práticas e culturas comunitárias que se contrapõem ao projeto de dominação e se inserem no cotidiano e na paisagem da cidade.

Neste segmento, a exposição reúne imagens e documentos da Praça Onze, principal local da Pequena África histórica, habitado, no começo do século 20, por uma expressiva população afrodescendente e também por imigrantes judeus, italianos e ciganos. Foi bem perto dali que se fundou a primeira escola de samba e, em torno dela, realizou-se o primeiro desfile das agremiações. Em 1944, foi derrubada para a construção da avenida Presidente Vargas. Na mostra, são exibidas imagens que documentam a arquitetura da praça, feitas por fotógrafos como Augusto Malta e Guilherme Santos, e também registros dos carnavais realizados no local. Há ainda ilustrações que retratam o carnaval na praça, mapas da região, entre outros registros.

A partir da década de 1930, compor, tocar e cantar samba deixou de ser delito para se tornar profissão. Ainda que longe das condições de igualdade com elencos dominados por cantores e músicos brancos, os artistas criados nas rodas e nos terreiros se tornaram presença ostensiva em estúdios de rádio e gravação. A mostra destaca figuras essenciais nessa história, como Donga, Pixinguinha, Heitor dos Prazeres, Clementina de Jesus, João da Baiana, Cartola, entre tantas outras. São exibidos documentos e itens como o violão de Donga, a partitura de “Pelo telefone”, considerado o primeiro samba gravado do Brasil, o passaporte e o contrato de Pixinguinha com a gravadora Victor, registros e reportagens sobre a turnê feita pelos Oito Batutas em Paris em 1922, além de pinturas de autoria de Heitor dos Prazeres.

A exposição também evidencia a atuação central das Tias na construção do universo do samba. Mulheres negras e mais velhas em sua maioria, a primeira geração de Tias chegou ao Rio de Janeiro em meados do século 19 provinda da Bahia. Eram rezadeiras, cozinheiras e quituteiras que exerciam papéis de liderança em suas comunidades. Com o passar das gerações, tornaram-se cada vez mais ligadas à história das escolas de samba. A partir de fotografias, livros, reportagens e depoimentos, a exposição trata da trajetória de nomes centrais, como Tia Ciata, Tia Amélia, Tia Dodô e Tia Lúcia.

O segundo andar da mostra, por sua vez, é focado nas práticas cotidianas, revelando como as redes de sociabilidade criadas no universo do samba no começo do século 20 reverberam na atualidade. Entre os destaques, está o núcleo que reúne objetos guardados nas casas de Tias e sambistas, como Djalma Sabiá, Dona Ivone Lara e Tia Maria do Jongo. São discos de vinil, máquinas de escrever, medalhas, imagens de santos e orixás, partituras e receitas, entre muitos itens de valor histórico e afetivo. Guardados em armários ou pendurados nas paredes das casas, revelam histórias muitas vezes pouco lembradas, além dos esforços de preservação da memória pelas próprias comunidades.

Outra faceta importante é o nascimento das escolas de samba, na década de 1920, nos subúrbios do Rio. A partir de diferentes materiais, a seleção reforça que, desde o princípio, as escolas são lugares associados à luta por direitos e cidadania da comunidade negra, funcionando como uma poderosa estratégia de pressão social e disputa por poder. Entre os itens apresentados, está o filme Nossa escola de samba (1968), de Manuel Horacio Gimenez, que registra a rotina da Unidos de Vila Isabel por um ano, em plena ditadura militar.

A seleção também relembra a experiência do bloco Cacique de Ramos, fundado em 1961 por um grupo de jovens moradores dos subúrbios da Leopoldina. Ali nasceu o Fundo de Quintal, grupo que revolucionou o samba no final da década de 1970, dando-lhe a feição de pagode. Na mostra, são exibidas fotos que registram a história do bloco, como a série de imagens tiradas por Carlos Vergara na década de 1970, além de discos, estandartes, fantasias e instrumentos musicais.

Outro destaque é a trajetória da escola de samba Quilombo, fundada em 1976 pelo compositor Antônio Candeia Filho, com o intuito de reforçar a presença da cultura negra no samba. São apresentados depoimentos, bandeiras, livros e registros fotográficos dos desfiles da escola, que contavam com a presença de nomes como Nei Lopes, Paulinho da Viola e Arlindo Cruz.

Também são enfatizadas tradições que permanecem até hoje, como o Trem do Samba, aqui presente em registros feitos pelo fotógrafo Januário Garcia, e a Feira das Yabás, evento dedicado ao encontro entre o samba e a culinária. No final do percurso, o público encontra um grande painel que mostra as conexões entre artistas de diferentes gerações, no qual é possível escutar canções e depoimentos.

Em cartaz até abril de 2024, a exposição celebra o samba como uma cultura em constante movimento, fruto de laços artísticos e comunitários, além de disputas e negociações, como pontuam os curadores: “Esta exposição parte da música para percorrer a intrincada rede de encontros, trocas e conflitos que ali se formou na primeira metade do século 20. Consciência política, religiosidade e solidariedade são inseparáveis da sofisticada produção artística que se espraia no espaço – ganhando uma cidade, o país e o mundo – e no tempo, ainda hoje pulsante em seu espírito dissidente de um país racista e desigual.”

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