Até 2021, o carnaval havia sido adiado duas vezes na história: em 1892 e em 1912. Nos dois casos, o povo foi para a rua assim mesmo, e a cidade acabou tendo a folia duas vezes, na data original e na substituta. Não havia ainda o desfile das escolas de samba da forma organizada que surgiu nos anos 1930. Ou seja, o carnaval de 2022 será o primeiro na história das agremiações que demora dois anos para acontecer. Alguma dúvida de que será o maior de todos os tempos? Se existe, os sambas-enredo do Grupo Especial estão aí para dissolver qualquer questionamento.
Como não podia deixar de ser, o mundo do samba – que sobreviveu à pandemia a duras penas, dando shows de solidariedade em lives e outras iniciativas, além de lamentar as partidas de mestres como Nelson Sargento, Dominguinhos do Estácio e Laíla – olha para si nos enredos e sambas do novo ano. A África, os orixás, as raízes do samba, Cartola, Delegado, Jamelão, Martinho da Vila… o samba agoniza, mas não morre. Não passa nem perto.
A coleção histórica de sambas-enredo, produzida mais uma vez por Mario Jorge Bruno, começa com “Batuque ao caçador”, um raro enredo afro da Mocidade Independente de Padre Miguel: “Oxóssi é caçador de uma flecha só”, canta o popstar Wander Pires, no samba de Carlinhos Brown, Diego Nicolau e parceiros.
Em seguida, sem Nelson Sargento e Beth Carvalho, a Mangueira traz o céu estrelado de Angenor, José e Laurindo, que entraram para a história do samba e da cultura mundial como Cartola, Jamelão e Delegado. O enredo do carnavalesco Leandro Vieira, campeão em 2016 e 2019, ganhou um samba lírico de Moacyr Luz e parceiros, interpretado com a firmeza de sempre por Marquinho Art’Samba. Um dos momentos de maior emoção do carnaval – que, claro, será de choradeira do começo ao fim, é bom começar logo a hidratação – está garantido em “Minha vida é uma peça”, homenagem da São Clemente ao ator e humorista Paulo Gustavo, morto de Covid em maio de 2021, aos 42 anos.
Humor, irreverência e emoção: a cara da escola aurinegra de Botafogo, em samba de Cláudio Filé e parceiros, defendido por Leozinho e Maninho.
A África volta à avenida pelo vermelho e branco de uma das agremiações a honrar com mais frequência o Continente Negro. Em “Resistência”, enredo desenvolvido pela professora Helena Theodoro com o carnavalesco Alex de Souza, o Salgueiro fala como o povo negro se defende, resistindo às intempéries.
O samba, raçudo como sempre, é assinado por Demá Chagas, Pedrinho da Flor e parceiros, nas vozes de Emerson Dias e Quinho (“já vai?”) do Salgueiro. Ainda pela Grande Tijuca, a Vila Isabel fala de seu maior patrimônio em “Canta, canta, minha gente! A Vila é de Martinho”. Quem ainda não viu os vídeos do mestre, chinelos de dedo, cantando com os compositores André Diniz, Evandro Bocão e outros o que promete ser mais um momento de arrepiar na folia? De volta ao Grupo Especial depois do título arrasador de 2020 no Acesso, a Imperatriz é mais uma a olhar para si: Rosa Magalhães foi convocada para lembrar e homenagear um colega, a lenda Arlindo Rodrigues, em “Meninos, eu vivi… Onde canta o sabiá, onde cantam Dalva e Lamartine”. Nas vozes de Arthur Franco e Bruno Ribas, a Imperatriz promete ser mais Imperatriz do que nunca na homenagem ao carnavalesco bicampeão pela escola em 1980-81.
Corta para a Baixada Fluminense e mais um enredo de louvor à África: depois do sucesso com a história de Joãozinho da Gomeia em 2020, a Grande Rio vem com “Fala, Majeté! Sete chaves de Exu”. O samba dos campeoníssimos Gustavo Clarão, Arlindinho e parceiros, na voz de Evandro Malandro, leva mais uma vez o terreiro para o asfalto: “Ô luar, ô luar, catiço reinando na segunda-feira/ ô luar, dobra o surdo de terceira”. Sem sair do Continente Negro, o carnaval chega a Oswaldo Cruz e Madureira em “Igi osé baobá”, com que a Portela canta a história da milenar árvore africana e de toda a mística à sua volta, na voz de Gilsinho. Ainda no mundo místico, a Unidos da Tijuca vai de “Waranã – A reexistência vermelha”, sobre a lenda indígena do guaraná. A bateria Pura Cadência, do mestre Casagrande, acompanha as vozes privilegiadas de Wictória e Wantuir.
Alô, Niterói! A campeã Viradouro garante: “Não há tristeza que possa suportar minha alegria”. Depois de dois anos sem desfile, alguém duvida? O samba sacudido, na voz de Zé Paulo Sierra, ilustra o enredo dos carnavalescos Tarcísio Zanon e Marcus Ferreira: “Tirei a máscara num clima envolvente/ Encostei os lábios suavemente/ E te beijei na alegria sem fim/ Carnaval, te amo, na vida és tudo pra mim”. Um sonho. De Nilópolis vem mais glória ao povo preto: “Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor”, canta Neguinho da Beija-Flor, 45 anos de serviços prestados ao carnaval. A força da Baixada se confirma no samba de J. Velloso, embalado pela bateria dos mestres Rodney e Plínio.
A coleção chega ao fim (já no botão repeat, claro) com a volta gloriosa de Paulo Barros ao Paraíso do Tuiuti: na escola de São Cristóvão em que apareceu para o carnaval, o mago também envereda pelos saberes negros em “Ka ríba tí ye – Que nossos caminhos se abram – O Tuiuti canta histórias de luta, sabedoria e resistência negra”. O samba dolente do craque Cláudio Russo é defendido por Celsinho Mody e Nino do Milênio.
Ninguém precisa mais se guardar pra quando o carnaval chegar.
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